quarta-feira, 16 de abril de 2008

Relações de poder e suas interferências no processo de trabalho de Equipes de Saúde da Família - breves considerações

Wagner Alves

O poder é expresso através das diversas relações sociais e na medida em que existem relações de poder, existe política. Essa política pode ser expressa sob diversos prismas do poder, não devendo, sobretudo, analisá-la somente sob a ótica das relações de poder ligadas ao campo institucional do Estado, o que poderia culminar em redundância ou simplificação ao que essa análise pretende. Tratando-se aqui das relações poder ligadas ao processo de trabalho das Equipes de Saúde da Família (PSF), é preciso ter em foco que a relações de poder estabelecer-se-ão tanto por uma via verticalizada, demonstrando o poder institucionalizado e a força do Estado nas suas três esferas governamentais, quanto nas relações de poder de perspectiva mais ampla, e não menos importante, que são as de dimensão social, dadas no cotidiano do trabalho das equipes e das relações estabelecidas com seus pares.


Reiterando a proposição anterior e numa tentativa de ilustrá-la pode-se recorrer inicialmente a Max Weber, donde o mesmo afirmou em suas produções textuais que a política não se restringe ao campo institucional estatal, ela permeia outras atividades da vida cotidiana. Em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber chegou a afirmar que “hoje, nossas reflexões não se baseiam, decerto, num conceito tão amplo. Queremos compreender como política apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma associação política, e, daí hoje, de um Estado” (WEBER, 2001, p. 97), fato que demonstra que as discussões em torno da conformação do Estado e das relações entre os seres, foram todas permeadas pela exposição de poder e política, situações que ainda nos dias atuais não fogem à regra.

Outro grande que ainda ilustra o tema poder e rompe com as perspectivas clássicas do termo é Michel Foucault. Diferente de Max Weber, Foucault trata o tema poder irrompendo as perspectivas clássicas de análise como dito anteriormente e afirma que o poder não pode ser localizado numa instituição ou no Estado, de forma que não seria poderia ser possível “tomá-lo” como era o pensamento marxista. Foucault em suas obras, sobretudo no livro Microfísica do Poder de (1998), afirma ser o poder uma relação de forças, e como relação, estará em todas as partes, atravessará pessoas, não podendo ser considerado (o poder) independente delas. O poder não se limita a aspectos institucionais e organizacionais e a formas econômicas, relações de classe, status, prestígio ou desempenho de papéis sociais; ele está presente em todas as relações na rua, na família, nas relações afetivas ou de amizade, não somente reprimindo e destruindo o outro, mas também produzindo efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. (FOUCAULT, 1998).

Seguindo as linhas de raciocínio apresentadas, podemos recorrer à história da conformação das políticas públicas de saúde no Brasil e entender que as “verdades constituídas, práticas e subjetividades” (FOUCAULT, 1998) intrínsecas às propostas de mudança de modelos de atenção à saúde, todas foram construídas sob disputas dos movimentos sociais, grupos hegemônicos e da exposição da força do Estado. Franco e Merhy (2003), numa de suas produções que analisam o Programa de Saúde da Família e as contradições de sua proposta enquanto modelo tecnoassistencial, afirmaram que “do jogo de pressão e disputas cria-se uma dada ‘correlação de forças’ que define a política de saúde, muitas vezes na forma de um amálgama, combinando interesses diversificados”. Na mesma produção ambos ainda citam que as produções dos modelos para saúde dão-se através das disputas de projetos por grupos e movimentos sociais, prevalecendo aí o jogo de forças que faz com que as políticas de saúde favoreçam ou não determinados agrupamentos e interesses. (FRANCO & MERHY, 2003).

A própria existência do Programa Saúde da Família, suas propostas e constituição, deve-se às pressões exercidas pelos movimentos reformistas que aconteceram no Brasil na década de 70 e 80, na tentativa de mudança do modelo assistencial clientelista e médico-centrado que limitava o acesso de milhões de usuários a serviços além de equivocadamente direcionar o sistema de saúde sob perspectivas mercadológicas excludentes.

Porém, a simples conformação de uma nova proposta com a eleição de um novo projeto a ser posto em prática não garante (nem garantiu até os dias atuais) a efetiva mudança do modelo de atenção, uma vez que diversas forças e projetos não foram seduzidos à nova proposta em questão, permanecendo aí o conflito, a disputa de poder e espaço por esses atores e agrupamentos. Franco e Merhy corroboram a idéia quando afirma que “não é a mudança da forma ou estrutura de um modelo medicocêntrico para outro, equipe multiprofissional centrado como núcleo da prestação de serviços, que por si só garante uma nova lógica finalística na organização do trabalho. É preciso mudar os sujeitos que se colocam como protagonistas de um novo modelo de assistência. É necessário associar tanto novos conhecimentos técnicos, novas configurações tecnológicas do trabalho em saúde, bem como outra micropolítica para este trabalho, inclusive no terreno de uma nova ética que o conduza.” (FRANCO & MERHY, 2003).
Pensando-se aqui no processo de trabalho das equipes de saúde da família, percebe-se que podemos ter exercida sob esse espaço a exposição de forças as mais distintas possíveis. Elas podem ser exercidas de forma verticalizada pelos órgãos de controle e gestão governamentais, podem acontecer pela disputa de projetos de grupos anti-hegemônicos e opositores, pelos membros da comunidade a quem se destina o trabalho de determinada equipe (satisfeitos ou não com o que é produzido pela equipe de saúde) ou ainda na própria estrutura da equipe entre os seus membros formadores, por disputas de projetos pessoais sob óticas e pontos de vistas diferenciados.

O enfraquecimento do processo de trabalho pela tentativa de tentar prevalecer os projetos dos distintos atores que compõe as equipes, sem citar as relações de poder externas que também influenciam esse espaço, terminam por não permitir a mudança então proposta e delineada nas políticas públicas então vigentes além de interferir na produção do cuidado gerado pelas equipes. Por não conseguir consensuar seus pontos de vistas, prevalece a prática do um auto-governo no seio das equipes de saúde, todas elas operando sob práticas e objetivos distintos ainda que dentro de um mesmo espaço e direcionados a um mesmo território.

Um trabalho realizado em instituições hospitalares por Souza e Lisboa (2001) que analisou a hierarquia e as relações de poder no trabalho das enfermeiras assistenciais, plenamente adaptável à perspectiva não-hospitalar do trabalho em saúde dada a semelhança da temática, conclui que muitos são os determinantes que tornam as relações de poder complexas e conflituosas no espaço desses profissionais como: a história de vida e as características pessoais, as características da formação acadêmica e da capacitação profissional, a contextualização histórica que permeia cada profissão que atua neste espaço, a vivência profissional e as características da organização do trabalho, bastante rígidas na maioria das vezes. Continuam ainda ressaltando que o relevante é levantar a totalidade que envolve a problemática, para a partir daí, pinçar determinantes que quantitativa e qualitativamente conduzam a transformações desse quadro difícil para essas enfermeiras. Evidenciou-se então que o universo de trabalho dessas enfermeiras (o campo hospitalar – não muito diferente das relações dos serviços em unidades de saúde básicas) é marcado por fortes relações de poder, em que se observam medições de força no sentido de caracterizar qual é a categoria profissional que se encontra em posição de destaque e prestígio nesse espaço. “A disputa é acirrada, haja vista a multiplicidade de profissionais da saúde que se inserem no trabalho hospitalar, todos com formações diversificadas, com desejos e aspirações profissionais e pessoais diversas, dessa forma, este é um campo complicado, o campo das relações de poder. Verificou-se, (...) que as relações com as diversas áreas acadêmicas são difíceis, pois existe o aspecto da valorização que todos buscam, e, dessa necessidade de se destacar, surge a vontade de conquistar a hegemonia no ambiente hospitalar.” (SOUZA, N.V.D e LISBOA, M.T.L., 2001).

Após essas discussões, fica claro que as relações de poder e a tentativa de fazer prevalecer projetos particulares permeiam todo ambiente de trabalho das equipes de saúde da família, e que no exercício da sua aplicabilidade surgem os conflitos pelos diferentes olhares e compreensões do que julgam ser o certo e adequado do fazer em saúde. Assim como dito por Foucault em sua visão positiva, o poder produz práticas, subjetividades e verdades que precisam ser direcionadas a destruir comportamentos e práticas estereotipadas do fazer em saúde e mais do que modificar estruturas, modificar suas referências epistemiológicas.
As relações de poder sempre irão interferir no processo de trabalho das equipes de saúde da família, mas o grande cerne é saber seduzi-las e concentrá-las a uma proposta consensual de mudança, mudança do modelo de atenção médico-centrado, mudança das relações de trabalho e de como ela se opera e mudança no processo de produção do cuidado em saúde.

“Para remodelar a assistência à saúde, o PSF deve modificar os processo de trabalho, fazendo-os operar de forma “tecnologias leves dependentes” mesmo quem para a produção do cuidado sejam necessários o uso das outras tecnologias. (...) a implantação do PSF por si só não significa que o modelo assitencial esteja modificado. Podem haver PSF´s médico-centrados assim como outros usuário-centrados, isso vai depdender de conseguir reciclar a forma de produzir o cuidado em saúde (...) que dizem respeito aos diversos modos de agir dos profissionais em relação entre si e com os usuários.” (FRANCO & MERHY, 2003).

Referências
CAMPOS, G.W.S. Reforma da Reforma: repensando a saúde. HUCITEC, São Paulo, 1992

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

FRANCO, T. B.; MERHY, E.E. PSF: Contradições de um programa destinado a mudança do modelo tecnoassistencial. In O trabalho em Saúde: Olhando e experienciando o SUS no cotidiando, HUCITEC, São Paulo, 2003.

PAIM, Jairnilson Silva. Direito à Saúde, Cidadania e Estado. 8ª Conferência Nacional de Saúde, 1986.

SOUZA, N.V.D.O.; LISBOA, M.T.L. A hierarquia e as relações de poder no trabalho das enfermeiras assistenciais. In http://paginas.terra.com.br/saude/ra/CACT003.htm

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 3a. ed. São Paulo, Pioneira Thomson Learning, 2001

ZANELA, A. V.; FILHO, K.P.; ABELLA, S.I.S. Relações sociais e poder em um contesto grupal: reflexões a partir de uma coletividade específica. Estudos de Psicologia Universidade Federal de Santa Catarina, 2003.


* Wagner Alves é enfermeiro

Um comentário:

Anônimo disse...

É muito simples e fácil de observar como esse poder é exercido. Como exemplo podemos citar um sem número de veradores que querem se meter nas secretarias de saúde e fazerem o que bem entendem, sem levar em consideração nada de técnico ou ético. E tem muito secretário de saúde por aí que também só assume o poder para usar como trampolim político para futuramente poderem se candidatar.
O poder (que acho ser uma coisa boa) chega a enojar quando utilizado dessa forma... é politicagem e não política