Wagner Alves
As discussões em torno de como se dá e é operado o trabalho em saúde nas suas diversas instâncias tem sido tema de debate ao longo da história, causando movimentos que possibilitaram os avanços no campo da saúde. Ao longo dessa história, observa-se que a forma de fazer a saúde em geral, sempre esteve atrelada ao contexto histórico, social e político da época vivenciada, o que permitiu o surgimento de grupos hegemônicos nesse cenário, vinculados a uma perspectiva mercantilista de produzir o cuidado em saúde.
A incorporação e intensificação do uso de tecnologias no processo de trabalho de saúde, especificamente pelos trabalhadores de saúde ao longo das últimas décadas, além de fortalecer a perspectiva capitalista de exploração da saúde como um mercado, inclinou ainda mais as práticas do cuidado em saúde e agudizou o distanciamento do profissional com o usuário dos serviços, tornando mais frias as relações profissionais-usuários, contribuindo para elevar ainda mais a angústia daquele que necessita de algum cuidado em saúde.
Túlio Franco e Emerson Merhy, em alguns dos seus textos, discutem o modelo tecnoassistencial de saúde do Brasil e tratam das contradições existentes na tentativa de mudar um modelo médico-assitencial hegemônico, voltado a perspectivas de mercado e tendo como figura central o médico e sua produtividade ambulatorial. Deixa claro em algumas passagens que as discussões em torno da necessidade de mudar o processo de trabalho não ganham força porque não são incluídos os protagonistas dessa cena, os trabalhadores de saúde, aqueles que possuem contato direto com os usuários e que tem o poder de fazer mudar ou manter a forma com a qual se trabalha com saúde no país. Atualmente, a incorporação das ditas tecnologias no processo de trabalho, que Túlio Franco e Emerson Mehry vem a chamar de tecnologias duras e leve-duras, tem onerado os caixas públicos uma vez que as ações dos profissionais passam a depender diretamente dessas “máquinas”: se não existe capacidade instalada de tecnologia duras e leve-duras nos serviços, não existe atenção à saúde. Essa é uma situação que reduz o escopo de atuação dos profissionais, diminui as possibilidades de resolução das pendências de saúde para com uma comunidade e corrompe o sistema de saúde.
A manutenção desse panorama reside na forma como são concebidas as políticas públicas de saúde no Brasil e da resistência dos profissionais em atuar de forma mais acolhedora e humanizada em seus serviços. Chega a ser até paradoxal a construção dessas políticas públicas e a forma como são interpretadas e executadas nas diversas regiões. E isso acontece com mais vigor na estratégia de saúde da família, pois não há um convencimento dos atores que compõem as equipes para aquilo que realmente a estratégia se predispõe: garantir o acesso à saúde com intervenções mais específicas e pontuais, sob territórios conhecidos pelos trabalhadores, em parceria com a comunidade local e assim, tentar consolidar a estratégia como modificadora do modelo de atenção à saúde médico-centrado para usuário-centrado.
Conforme afirmado anteriormente, a inserção de profissionais não sensibilizados ao objetivo de mudança a que se propõe a estratégia, termina por repetir as práticas, sem alteração de realidades. Isso remonta à formação desses profissionais nas academias que desde o início já incorporam idéias de mercado sem compromisso social.
A perspectiva ambulatorial de produção (realização de maior número de procedimentos e atendimentos) e a dureza dos instrumentos para atingir metas e números vão exatamente à contramão do processo que está tentando se trabalhar. Da forma como é concebida a proposta do PSF, ela permite que os trabalhadores de saúde executem nos seus espaços um autogoverno. Esse poder necessariamente refletirá a forma de trabalho que os profissionais julgam ser a melhor para uma população em um espaço específico sem deixar de ser conveniente aos interesses e particularidades desse grupo, principalmente aos interesses de aspecto financeiros e de carga de trabalho. Assim, o processo de trabalho, longe de constituir uma homogeneidade dentro de um mesmo sistema de saúde, vai sendo organizado e executado sob influências dos valores pessoais, das subjetividades e dos objetivos e compromissos desses trabalhadores com os usuários.
É exatamente nesse ponto que se concentra a possibilidade de interferir e apoiar o processo de trabalho para mudança de práticas. Quando se trata de necessidade de provocar atitudes para mudar o modelo de atenção, significa pensar uma nova forma de agir em saúde, na perspectiva mais ampliada de seu conceito. Não devem apenas ser considerados aspectos técnicos e setorizados, mas a necessidade de interagir com o consumidor do trabalho em saúde (que é o usuário e o próprio trabalhador) e integralizar ações de outros setores como o econômico, o social, o científico, que impactam diretamente na avaliação de saúde de uma dada população.
A mudança do modelo de atenção tecnoassistencial transcende aspectos administrativos, de definição de políticas e prioridades ou de adoção de práticas e/ou modelos alternativos. Não existirá nunca a melhor proposta ou modelo, pois, os atores sociais, guardando todas as suas singularidades, defenderão sempre projetos distintos uns dos outros, alguns até antagônicos, mas um deles deverá prevalecer sob pena de não se sistematizar nada dos serviços e também de nada se produzir na saúde. Compreende-se então que nesse universo de diversidades, o consenso sobre um mínimo para organizar o trabalho em saúde está caracterizado justamente na estratégia de saúde da família, como proposta de tentar unificar alguns desses distintos pensamentos.
Assim, a proposta do PSF deve ser discutida e apoiada até que surjam alternativas de maior consistência para melhorar o processo de trabalho
Wagner Alves é Enfermeiro
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